terça-feira, 30 de julho de 2019

A ANGUSTIADA WEDNA


O mês de abril de 1990 encontrou uma menina em seus anos de puberdade descobrindo os primeiros beijos de amor. Passava um pouco das 10 horas da manhã em Maracanaú e Wedna amassava seus lábios abertos na boca de um colega de escola num muro baixo à sombra de uma árvore. Ao seu lado, o irmão gêmeo da mocinha imitava a atitude da menina com uma outra garota. Os quatro usavam uniforme escolar. Haviam feito provas e, por isso, saíram mais cedo.
Aquela cena era comum por ali, mas uma vizinha escandalizou-se com o que viu. A mulher apressou suas canelas finas até a casa de Dona Edna. Ao chegar, bateu com força na porta e gritou:
-- Chega, mulher! Você não sabe quem eu vi ali se esfregando no filho do Seu Zé da oficina!
Dona Edna ouviu aquilo enquanto cozinhava o feijão e foi rápido, apesar de seu sobrepeso, abrir a porta para a vizinha.
-- Quem!?
-- A tua menina!
-- O quê!?!?!?!
--É, mulher! Corre! Se não ela vai pegar um bucho!
A desesperada mãe saiu furiosa a correr pela calçada com uma sandália na mão. A vizinha, muito prestativa, apagou o fogo que esquentava o feijão, tirou seu cinto, alcançou Dona Edna e armou--lhe a outra mão:
-- Pega o cinto, mulher!
 Com as duas mãos ocupadas, a mulher correu em fúria para castigar sua filha. Esta ainda delirava com pensamentos úmidos quando sua amiga lhe avisou em pânico:
-- Mulher! Tua mãe!
Suas pupilas dilataram, sua ofegante respiração parou instantaneamente bem como seu coração, mas este logo passou a metralhar-lhe o peito. Ela olhou para o lado e viu aquele meteoro voar rasante e crescente em sua direção. A menina correu para a rua e fez um movimento de arco, voltando à calçada. A mãe esbarrou nas outras pessoas derrubando-as como se fossem pinos de boliche.
A senhora se levantou mais furiosa ainda e foi em busca da filha que subia a calçada em altíssima velocidade. A garota alcançou a porta de casa, subiu as escadas, entrou em seu quarto e trancou a porta. O alívio ainda não invadira seu peito quando ouviu as pisadas e os gritos da mãe no corredor:
-- VA-GA-BUN-DAAAAA!!!
PAMPAMPAMPAMPAMPAM! As pancadas furiosas da mulher na porta eram bombas sonoras a explodir nos ouvidinhos e no pequeno coração da menina.
-- VAGABUNDAAAA! ABRE ESSA PORTA, WEDNA!
PAMPAMPAMPAMPAMPAM! Mais explosões e a filha aperta as mãos contra as orelhinhas e contrai seu rosto numa careta vermelha de pânico e desespero! Sua cabeça encurvada para frente deixam cair lágrimas pesadas sobre suas coxas! PAMPAMPAMPAMPAM! Logo, ela sobe o queixo e protesta:
-- O Relieudo também tava namorando!
-- Não interessa!!! Seu irmão é hômi!!! Abre essa porta, Vagabunda!!!
PAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAM. As pequenas mãos da menina, como um torno, esmagam seu minúsculo crâneo! Sua delicada boca se abre num grito interno e silencioso! O terror esquentava suas veias e gelava seus ossos! PAMPAMPAMPAMPAMPAMPAM.
Silêncio.
Promessa:
-- Quando você sair daí, vai ver uma coisa!!!
PAM. A garota ouve passos se distanciado e seu coraçãozinho ainda infantil desacelera aos poucos. A respiração vai ficando mais lenta e a serenidade volta a sua face. Ela começa a sentir um alívio e uma alegria tímida. Levanta-se e vai ao banheiro, sua mão ainda trêmula aciona a torneira, lava o rosto, olha-se no espelho, tem a impressão de estar diante de outra pessoa e isso a assusta um pouco. Logo, cria uma expressão séria que dura quase um segundo e, de súbito, se abre num sorriso lento e ri. Primeiro em silêncio, mas depois:
-- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAAHA!!!
Com olhos apertados e cabeça em movimento de pêndulo invertido, gargalha como um palhaço louco de cabelo desgrenhado.
-- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAH!!! Escapei!!! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAH!!!
Ela ri até sua barriguinha doer. Volta à cama, suspira e deixa cair seu corpinho sobre as molas do colchão. Ela se sente leve tal qual um náufrago semiconsciente recém chegado à praia. Ela fica praticamente imóvel por quase 10 minutos até ouvir leves batidas na porta.
Pompompom.
-- Minha fia, abra a porta. Não vou fazer nada não. Venha comer. O almoço tá pronto.
A voz mansa da mãe lhe deixou intrigada e nervosa. Por isso, ela mente:
-- Não, mãe. Tô com fome agora não. Mais tarde eu como.
-- Tá bom, minha fia.
A menina se levanta e pega sua caixinha de música. O movimento da bonequinha bailarina sobre o espelho e a música Danúbio Azul, de Strauss, que sai da caixinha devolvem aos poucos a serenidade da garota. Com a alma cansada ela adormece. Sonha que é ela a bailarina girando sobre um chão espelhado. Seu corpinho gira e a menina se sente leve, livre e contente, mas isso dura até ela ver uma outra bailarina a seu lado. Esta, de vestido vermelho e expressão maliciosa, ri baixinho com a mão na boca. A garota percebe uma incrível semelhança entre as duas. Isso a deixa apreensiva e assustada. A moça de escarlate é a sua cópia mais sombria e sensual! Era assustador ver uma versão de si mesma tão igual e diferente ao mesmo tempo. De repente, sua gêmea para de girar, agarra os ombros da menina com força, aproxima os olhos diabólicos dos olhos inocentes de Wedna e fala cinicamente:
-- Você pensa que escapou, né!? Não escapou. Você vai ter o que merece porque tava fazendo coisa feia. Vai apanhar pra deixar de ser vagabunda!
-- Eu não sou vagabunda! Sou romântica! Eu gosto dele de verdade! Meu irmão tem a mesma idade que eu e ele nem gosta daquela menina. Ele que é vagabundo, cafajeste! Tá só enganando a menina e beijando outras. Eu, que só gosto de um, só quero um, sou vagabunda por quê!?
-- Porque você não é hômi. Sabe o que você é?
-- O quê?
-- Minha fia...
Pompompom.
-- O quê!?
Sem entender nada, percebeu que a sua cópia tinha agora a mesma voz de Dona Edna:
-- Minha fia...
Pompompom. A imagem de sua gêmea foi ficando turva, as batidas (pompompom) se repetindo e ela continuava ouvindo a voz da mãe:
-- Minha fia...
Ela acorda. Ouve suaves batidas na porta (pompompom) e uma voz terrivelmente familiar:
-- Minha fia... já são 2 horas da tarde, tá com fome não? Venha... que eu vou esquentar o almoço.
Ela sentia muita fome, mas não cedeu:
-- Tô com fome ainda não, mãe. Depois eu como.
-- Tá certo.
Sai.
Ela sentia muita fome. Não comeu nada porque acordou muito ansiosa para dar seu primeiro beijo no seu primeiro amor. Sua barriga lhe reclamava comida, mas seu pavor e sua desconfiança ainda lhe acorrentavam àquele quarto. Wedna estava perdida, famélica e apavorada. Sofria terrivelmente aquela privação de liberdade e seu senso de justiça quase transformou seu medo em ira, mas o pânico não deixava espaço para o ódio. Assim, suportou muitos minutos de angústia. Mais de meia hora se passaram e ela vê a pequena bailarina lhe sorrir:
-- Hihihihi! Tua mãe vai te pegar!
Ela fecha a caixinha de música e acaba a alucinação por um instante. Ela olha no seu relógio amarelo e percebe os ponteiros marcarem 14:36 H. Pompompom. Tais batidas assustam a menina, mas elas não vêm da porta. Wedna olha apavorada em direção à caixa e vê com pavor a tampa se levantar por quase um centímetro a cada batida. Pompompom. Pompompom. Pompompom. De dentro da caixinha, escuta uma voz infantil e manhosa:
-- Por favor, amiga, me tira daqui! Por favor! Eu quero sair! Tá escuro aqui!
Ela se apieda e abre. A bonequinha lhe sorri meiga e cordial como como a Branca de Neve:
-- Obrigada!
Depois, o sorriso meigo lentamente se transforma em expressão de malícia:
-- Obrigada! Agora posso ver tua mãe te batendo! HAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
Ela fecha a caixa rapidamente, mas escuta novamente as terríveis batidas... pompompom:
-- Me tira daqui sua vagabunda! Não tem como escapar!
Em desespero, ela pega a caixa e levanta o objeto para estraçalhá-lo no chão, mas... pompompom:
-- Minha fia, eu tô indo pra sua tia agora pra olhar um tecido. Só volto de noite. A comida ainda tá no fogão. Tchau!
Ela ouviu desconfiada aquela voz mansa e os passos da mãe no corredor e depois na escada. A garota foi até a janela com olhos esbugalhados e a imagem da mãe entrando no carro lhe deu uma euforia colossal! O carro dobrou a esquina e a menina correu até a porta, girou a chave e passou apressada e lenta pelo corredor. Desceu as escadas com dificuldade a tremer um turbilhão de emoções! Viu seu irmão Relieudo mexer na vitrola e escutou a Plebe Rude: “Não é nossa culpa...” o som lhe revitalizou a alma e deu a ela força para avançar até a cozinha.
Ela encheu com pressa o prato e devorou, saboreou aquela comida fria com toda vontade enquanto a Plebe Rude lhe gritava nos ouvidos: “ATÉ QUANDO ESPERAR...” Wedna se engasga num riso emocionado. A boca está cheia, as narinas soltam um risinho de flauta e os olhos derramam lágrimas de campeão olímpico! “ATÉ QUANDO ESPERAR...”
Relieudo passa por ela e abre a geladeira. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. Ela termina de comer quando ele pega a garrafa. “ATÉ QUANDO ESPERAR...” Ele se vira e olha sua irmã com um sorriso cordial. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. Depois, ele olha por cima da cabeça da menina e seu sorriso fica mais largo e feliz. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. A menina, em pânico, entende o sinal, mas antes que olhasse para trás uma garra de monstro puxou sua cabecinha para trás derrubando a garota e a cadeira! “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. O cinto de dona Edna subiu e desceu muitas, muitas, muitas vezes:
-- EU DISSE QUE TE PEGAVA!!!
PÁ, PÁ, PÁ!!! “ATÉ QUANDO ESPERAR...” PÁ, PÁ, PÁ:
-- AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH, PARAAAAAA!!!
“... A PLEBE AJOELHAR...” PÁPÁPÁ:
-- AAAAAAAAAAAAAAHHH!!!
“ESPERANDO A AJUDA DE DEUS.” PÁPÁPÁ!!!
Dona Edna soube esperar. Respirou fundo, criou uma estratégia cruel e racional para, no momento certo, liberar sua deliciosa fúria moralista sobre uma criatura frágil e indefesa. Aquele anjinho desceu as escadas e sofreu o inferno dos valores vigentes no nosso saudoso século XX. Paciência é uma virtude.
FIM

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O ANGUSTIADO BÉRGSON

Daniel Dutra Um


Era abril de 1990. Bérgson, cobrador de ônibus, voltava do trabalho. 48 horas sem dormir. Precisava muito do dinheiro. Conciliava sua triste labuta e a faculdade de Letras. Chegou a casa esgotado. Lembrava-se de alguns transtornos no emprego. Um colega homossexual da universidade fora inicialmente humilhado por um velho, mas terminou por cima, humilhando o idoso. Foi uma alegria temporária, pois detestava ficar tanto tempo em um transporte coletivo repleto de pessoas infelizes.
Mal reconheceu a porta de sua residência. Adentrou o banheiro e sentiu a água gelada do chuveiro ferir seu corpo (precisava daquilo). Para esquecer o quanto sua vida era ruim, necessitava de um pouco do sofrimento noturno e purificador. Sai com a toalha na cintura pensando em Literatura e sofrimento. Chega à cama. Fecha os olhos e tenta libertar-se dos problemas, contudo, cansaço e problema não combinam com noite tranqüila. Sua cabeça furava o travesseiro em uma angústia pungente. Olhava as telhas e ouvia o barulho dos ratos. Pensava na desgraça que era sua vida. “Porra! Tanto conhecimento, tão pouco dinheiro!” A tosse da mãe viúva piorava a tentativa de descanso. “Se pelo menos eu sonhasse, mesmo sem dormir”.
Tentou relaxar. Tomou um gole de cachaça escondida embaixo da cama (a mãe não podia ver). Bebeu mais um gole. Sentiu as gilletes etílicas rasgarem sua garganta. O sofrimento trouxe-lhe certa paz. Tal tranqüilidade foi temporária, pois logo viu uma luz rosa ferindo-lhe as pupilas desgastadas pelas horas de trabalho.
Então, apareceram dois homens a sua frente. Um mais simpático e o outro com expressão grave. Tirante a cor dos ternos que trajavam ambos tinham igual aparência. Eram moreno-claros, tinham cabelos negros, usavam rabo-de-cavalo e barba. Além disso, eles demonstraram muita elegância. Aquela visão não o deixou impressionado, pois delírios noturnos eram constantes na vida de Bérgson. Certa vez, ele imaginou dois ratos conversando no teto sobre as dificuldades em conseguir comida em épocas chuvosas, também ouviu conselhos de um calango acerca de relacionamentos amorosos.  Portanto, viu aqueles distintos senhores como um paliativo efêmero para seu tédio.
O de branco falou primeiro:
-- Prio, cont maa voi...
Logo, o de preto interrompeu:
-- Por favor, Lu, fale em um idioma que o rapaz entenda! Pelo amor de Mim!
-- Desculpe-me, força do hábito. Eu sou Lúcifer, também conhecido como Diabo.
-- Pé preto, canhoto, coisa ruim, chifrudo... hehehe. Completou o senhor de preto.
-- Ah, não força! Respondeu meio irritado.
-- Eu sou Javé, também conhecido como Deus.
-- Salvador, Glorioso, e mais um monte de apelidos fanáticos idiotas! Completou o senhor de branco.
-- Não seja invejoso hehehe.
O rapaz olhava os dois com expressão estranha.
-- Ele deve estar achando esquisito ver Deus de preto e o Diabo de branco. Vamos trocar, não queremos ver o rapaz confuso.
-- Eu gosto de branco.
-- Deixa de ser chato!
-- Tá...
Fumacinha e pronto. Estavam de roupas trocadas.
-- Agora sim. Falou o senhor mais simpático. Você sabe, eu criei o mundo...
-- Não, ninguém sabe... Interrompe o mais sério, ironizando.
-- Como eu ia dizendo tudo de bom que há no mundo foi obra minha.
-- Discordo.
-- OK. “Tudo” foi força de expressão. É claro que muitas coisas boas foram processos de transformações.
-- Como o quê? Indagou o homem.
-- A humanidade, por exemplo. Eu fiz um modelo básico de vocês, aí foram mudando hábitos, cabelos, usaram roupas e o resto todo mundo sabe. É verdade que alguns Eu criei.
-- Eu também criei um monte.
-- Os meus são melhores.
-- São nada.
-- Claro que são.
-- Claro que não.
O homem impaciente interrompe:
-- Não é mais fácil se cada um citar exemplos?!
-- Boa ideia, respondeu o agora de branco com ironia. Eu criei a maioria dos papas, reis, imperadores, presidentes...
-- O homem, já meio fulo, interrompe novamente:
-- Você pode ser mais específico?!
-- Grande ideia, meu rapaz. Responde com sarcasmo, o senhor de branco. Depois, olha para o senhor de preto e sinaliza para ele começar.
-- Eu criei os prazeres. Até ele concorda que a vida era muito monótona. Antes disso só existia uma leve satisfação.
-- Ele está certo, contudo, a maioria das criações que deram prazer à humanidade foi obra minha.
-- Por exemplo? Indaga o homem.
-- Bach, Mozart, Villa-Lobos,...
-- Beethoven? Pergunta Bérgson.
-- Não. Esse foi uma grata surpresa.
-- O Hitler foi criação dele. Diz o senhor de preto com um olhar malicioso.
-- Isso é verdade!?
-- É...! Tinha grandes planos para ele. Sabe, Criei um ser humano muito inteligente. Meio esquisito, porém bastante carismático e grande estrategista. Além disso, completei sua personalidade com uma boa dose de consciência idealista. Ele deveria ser um líder para guiar a humanidade depois de tantas mazelas sociais. Mas... Como todo mundo sabe, deu tudo errado. Uma pena! Lamenta o senhor de branco.
-- Quer dizer que ele tá no céu!?
-- Claro que não! Ele desceu aos infernos em questão de segundos!
-- É possível a criação de um ir para o lado do outro?
-- Sim, responde o senhor de branco. John Lennon, por exemplo, foi criação minha e agora está com ele. Aponta o outro.
-- Comigo, não.
-- Claro que sim.
-- Claro que não.
-- Eu o condenei quando ele disse ser mais popular que Jesus.
-- Eu só sei que comigo ele não está.
-- Ah, é... Ele fez aquela musiquinha de natal e eu o perdoei... Não me lembrava mais.
-- Não repare. Ele condena e perdoa com muita facilidade. Mas, agora é minha vez...  O Jimi Hendrix foi obra minha! Fala orgulhoso, o senhor de preto.
-- Mas quando ele estava no auge eu o trouxe para mim.
-- Aquilo foi golpe baixo! Falou irritado o senhor de preto. Você não podia ter feito aquilo!
-- Claro que podia. Esqueceu que eu sou onipotente?
-- Você não é onipotente!
-- Força de expressão. Não posso tudo, mas posso fazer muita coisa. Sendo assim, levei o Jimi Hendrix para minha morada. Se você acha que ele era bom com a guitarra, deveria vê-lo com uma harpa.
-- Harpa?! Falou furioso o senhor de preto e continua. Você pôs o Jimi Hendrix pra tocar haaarrrpaaa?!
-- Ah... Você sabe... Eu sei que é meio clichê, mas é um instrumento mais celestial, divino. Os meus anjinhos não gostam muito de distorções sonoras. Preferem melodias mais limpinhas, mais... mais...
-- Divinas. Completou Bérgson.
O senhor de preto explodiu.  
-- Baroaaaaaaaateeee!!!
-- Baro... quê? Perguntou Bérgson.
-- Nada, é só um palavrão na língua dos anjos. Respondeu o senhor de branco.
-- Desde quando o Diabo é anjo?
-- Deixa pra lá, é uma longa história.
Enquanto isso o senhor de preto continuava aos gritos. Sua pele ficou em um tom rosado, seus dentes amarelaram e brilharam intensamente. Logo, sumiu em uma fumaça vermelha.
O senhor de branco observa, faz uma expressão de lamento e diz:
-- Uma pena, meu amigo, a nossa conversa ter ficado por aqui. Você teria aprendido muitas coisas valiosas...
-- Sou todo ouvidos...
-- Não dá. Não consigo ficar muito tempo em um lugar aqui na terra sem a presença dele.
Nesse momento ele começa a ficar transparente. Então se despede:
-- Até nunca, meu amigo.
Desaparece em suave e cinza fumaça.
-- Que é isso! Agora tenho alucinações até com Deus e o Diabo... Melhor tentar dormir. Dito isto, fecha os olhos e relaxa.
De súbito, porém, levanta rapidamente e indaga-se:
-- Ei, quem é Jimi Hendrix?!
FIM


segunda-feira, 11 de abril de 2011

O Retrógrado

Daniel Dutra Um

Passava das duas horas da tarde. Naquele abril de 1990, em Maracanaú, o clima estava especialmente terrível. O sol expulsara as nuvens e fritava as sete pessoas no ponto de ônibus. Havia muito “ai, meu Deus!”, “porra!”, “caralho”, “diabo dessa merda não chega logo!”, dentre outras infâmias. No meio de tanta reclamação, José das Chagas estava alheio a tudo. Tinha pouco mais de quarenta anos. Era moreno da cor do barro. Seu rosto enrugado e sua expressão grave davam-lhe uma aparência bem mais velha. Não se importava com o calor, nem com o suor constante, que lhe pregava a já gasta camisa marrom ao peito. Apenas segurava o chapéu de palha sem tirá-lo da cabeça, olhava ao longe e pensava em seu filho, Willynélson, e no que acontecera a ele. Então, soltava o ar pelo nariz. Em um desses suspiros, lamentou em voz baixíssima:
-- O “bichim”...!
Finalmente o ônibus chegou e todos entraram. José das Chagas passou pela roleta sem responder ao cumprimento do cobrador. Sentou-se em um assento logo adiante e ficou mudo a observar a vista da janela.
Tudo ocorria no mais calmo tédio até chegar um rapaz de uns dezoito anos. Ele era magro, estatura mediana, trajava calça de moletom apertada, camisa vermelha bem justa e um brinco dourado na orelha esquerda. Entrou serpenteando no coletivo e encontrou uma amiga sentada perto do motorista. Ao avistá-la exclamou:
--Diz, “bicha véa”!
Ao que ela respondeu:
--Fala, Irisvando!
--Não me chama assim, mulher! Sabe que eu não gosto!
--Desculpe, Íris.
--Ah, sim! Irisvando não combina com a minha personalidade. Hi, hi, hi.
-- Tu tava onde, que eu não te via mais?
-- Tava por aí... você que sumiu...
Enquanto ocorria este pequeno diálogo, um homem cochichou a outro:
-- É “veado”.
A conversa continuou:
-- Então, Íris, tá fazendo o quê?
-- Ai, mulher, tô fazendo faculdade, curso de Letras e me encontrei...
-- Como assim?
-- Ah, mulher, lá eu não preciso me esconder... posso ser eu mesmo ! Não preciso ficar preocupado em como agir, pensar e falar o tempo todo. Sou totalmente livre!
-- Livre como?
-- Ah, você sabe, né, Karla!? Quem é diferente como eu precisa sempre disfarçar, mostrar “pros” outros uma coisa que a gente não é... mas agora, não! Eu posso me abrir, ser espontâneo e mostrar quem eu realmente sou!
--  Tá gostando do curso?
-- Tô amaaaaaaaaaandooooooo! “Tô” vendo tudo que venero: poesia, crítica literária, gente interessantíssima e com ótimas idéias! Viva a Letras!
Aquela veadagem toda estava deixando Seu José louco de raiva! Sua ira crescia a cada gesto e palavra do universitário. Portanto, após alguns instantes de imensa resignação, volta os olhos para o cobrador e “vomita”:
-- Rapaz... sabe “duma” coisa que eu tenho abuso!? É de “veado”!
O jovem interrompe a respiração, assustado e estupefato! E o velho continua:
--O povo fala que “homossessalirmo” é de nascença... nascença, uma porra! No tempo do meu pai, quando aparecia um “mininozim fresquim”, a gente metia-lhe a chibata e “num” instante aprendia ser “hômi”!
Tais palavras tiveram um efeito bastante diverso nos passageiros. Alguns sorriam discretamente, Karla mostrava-se assustada e constrangida a arregalar os olhos. Havia ainda os que, a exemplo do cobrador, ficaram impassíveis. Quanto ao nosso pederasta, este trocara o semblante risonho e amistoso por uma expressão extremamente séria. Não correspondia ao olhar apoplético de sua querida “bicha véa”. Mantinha as pálpebras semicerradas e o olhar reto. Permanecia estático. Motorista olhava pelo espelho, divertindo-se da situação. O pai de Willynélson continuava o seu discurso homofóbico:
-- Como é que pode!? O “cara” nascer “hômi” e “num” gostar de mulher! Preferir levar vara nos “quarto”!
Agora, algumas pessoas já não disfarçavam as risadas.
--“Pra” mim, veado tem que ir “pro” inferno! É bom que lá vai aproveitar o fogo e queimar a rosca bem muito!
Dito isto, com exceção do cobrador de Karla e de Íris, todos gargalharam estridentemente! O velho agigantava-se cada vez mais. Sentia um prazer imenso e novo no exercício da humilhação.
Agora, peço ao leitor imaginar um leão imponente sobre uma zebra ensangüentada. Ela respira com dificuldade e mal consegue mexer as patas. De súbito, o asinino dá um salto empurrando o leão, que cai de costas para o solo. Depois afugenta-o através de mordidas e tenebrosos relinchos. Não conseguiu? Tudo bem, talvez eu tenha exigido muito de você. Pois bem, voltemos ao ônibus. Munido de uma confiança voraz e sádica, Seu Chagas preparou mais uma frase preconceituosa, mas foi interrompido pelo movimento brusco do rapaz, que se levantou e fulminou o velho com um olhar decidido e furioso. O idoso, espantado, conteve-se. Após meio segundo, o jovem disparou:
-- Eu espero que o seu pensamento retrógrado MORRA... EM BREVE... COM O SENHOR!
Tais palavras esmagaram o orgulho do ancião, pois este julgava a presa já dominada. Neste momento, observava aparvalhado o rapaz descer do transporte. Percebeu o riso dos passageiros, que agora riam dele, e sentiu-se mais humilhado. Por fim, tentou inutilmente recuperar o respeito de todos olhando pela janela na direção do rapaz, que entrava no Centro de Humanidades da UFC, dizendo:
-- É o quê, rapaz!? Como é!? Ora... um baitola desse...!
O velho fora humilhado sem saber por quê. Este fato assombrará o velho para sempre. Nunca vai saber o significado da palavra retrógrado!


FIM

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O HOMEM ENCURVADO

Essa história se passou em Maracanaú no final da década de 1980, no extremo sul da Rua Manoel Pereira. Ali morava uma família humilde formada por três pessoas: José das Chagas, sua esposa Maria das Chagas, e o único filho do casal, o jovem Francisco Willynélson das Chagas, de 20 anos.
Seu José passava seus dias em pescaria no açude de Santo Antônio do Pitaguary, próximo a sua casinha. Era um velho de trinta e nove anos, e vivia mecanicamente, indo e vindo carregando sua cesta, que ele enchia com traíras e acarás do açude. Não era de muitas palavras, nem de muitos amigos.
Já Dona Maria tinha pensamentos que oscilavam de uma religiosidade medrosa a uma supersticiosidade extrema. Nela sobravam as palavras que faltavam ao marido.
Nelso, como era conhecido, falava menos que seu pai, e pensava quase que na mesma proporção com que falava. Quase sempre desconfiado, temia a todos, com exceção de seus pais. Odiava o isolamento, mas não conseguia viver de outro jeito. Poucos eram seus divertimentos. Um deles era caçar calangos com as mãos. Fazia isso gritando e balançando a cabeça. Sua mãe disse certa vez:
- Foi “quebrante”, o povo vivia “dizeno” que o “minino” era “bunitim” e eu “num” quis botar a fita vermelha no “bracim” dele, mulher...! Aí o “bichim” ficou retardado... Mas com a graça de Deus ele vai ficar bom, se Deus quiser...!
Quando conseguia pegar um calango, dava muitas voltas ao redor da casa, levantava o bicho o mais alto que podia, e movimentava-o sinuosamente. Neste momento, a brincadeira era outra. Ele fingia que o lagarto era um avião.
Apesar da simplicidade, a casa possuía televisão e aparelho de som, ambos presentes de  políticos em campanha. Sua rotina também consistia em assistir à velha TV, mesmo sem entender nada do que se passava. Porém gostava quando aparecia algum avião. Batia palmas e pulava na cadeira, falseteando alguns gritinhos. Repudiava qualquer tipo de música, a não ser as do LP da Tufa, uma linda apresentadora infantil sem nenhum talento, muito amada naquela época. Nelso delirava a cada refrão:
- Acara-cara-cara-lhê-ô-ô-ô, Acara-cara-cara-lhê-ô-ô-ô...
Assim, ele passava o dia inteiro, ouvindo essa música de gosto duvidoso, até a chegada de seu pai, que sempre gritava:
-Fecha essa porra!
Obedecia sem contestar.
A mente de Nelso trabalhava pouquíssimo. Quando não estava se divertindo, sentava em um canto da casa olhando as estrelas. De repente, ele se via montado em um gigante calango asado voando cada vez mais alto... Até chegar a uma enorme montanha negra repleta de grandes refletores brancos. Esses delírios deixavam o rapaz extremamente angustiado, sentindo vontade de gritar, mas não o fazia. Em vez disso, encolhia-se até quase sumir, enquanto chorava e soltava gemidos semelhantes aos de cães depressivos e moribundos. Tanto sofrimento não impedia Nelso de ter os mesmos devaneios posteriormente, pois ele não se lembrava de nada no dia seguinte. Só havia uma coisa que o apavorava constantemente: comer baião quente e ir para chuva. Segundo sua mãe, ele ficaria torto e horrendo para sempre...
Certa vez, o jovem atormentado da família Chagas estava especialmente inquieto, andando de leste a oeste da casa, parecia desejar muito algo, mas não sabia o quê. Então, pôs o vinil da Tufa encostando a agulha na sua faixa mais querida. Ele começou a pular em êxtase. Sua excitação aumenta à medida que se aproxima o refrão, sentindo-se flutuar... Até que, justo numa ínfima fração de segundo antes do extremo gozo psicológico...
O disco engancha:
-Acara, acara... acara... acara...
O desespero toma conta de sua mente e logo transborda para todo o corpo... Ele não sabe o que fazer... Já passam das sete da noite e ele está só... O cheiro do baião-de-dois fervendo na panela e a chuva forte acompanhada de raios e trovões o deixavam mais aflito! Seu corpo encharcado de suor tremia em todas as direções. Uma profusão de imagens turvas de calangos alados invade sua mente!
Desesperado, põe a mão sobre o disco e gira-o no sentido contrário...
Nesse momento ele ouve a voz de Tufa:
-Cooooome o baaaaiiiiião...
Nelso corre até ao fogão, joga a tampa da panela para longe, enfia as duas mãos nesta sem se importar com sua temperatura absurdamente alta e começa a devorar o baião de maneira animalesca, com feijões escorrendo pelo seu corpo. Ele termina. Contudo, o disco continua enganchado no mesmo ponto. O rapaz vai ao encontro da vitrola, e mais uma vez gira o disco na direção contrária, e novamente ele ouve a Tufa:
-Cooooorreeeeeee...
Nesse instante seu desespero só poderia ser comparado ao de uma mulher que vê seu filho sendo assassinado! Solta um grito intenso e horrendo como o de uma grande besta selvagem. E corre! Bate o joelho na porta e cai girando sobre si mesmo em meio à lama e à chuva. Levanta os braços e grita novamente, agora com mais fúria! Os trovões começam a lhe falar algo:
-Toooorrrrtooooo...
Cheio de horror, seu corpo começa a encurvar-se como um ponto de interrogação, seus joelhos dobram e seus braços entortam para dentro, colando-se ao peito. Quase cai, em vez disso, corre para o meio da mata densa. Cai e levanta várias vezes enquanto corre, até que avista um calango, agarra-o com força e devora-o com ferocidade. Então, para... Fica confuso. Já não se lembra mais de sua casa, família, da Tufa... Nada... Olha em volta e só vê árvores e relâmpagos. Percebe que na sua mão estão alguns restos do calango. Ele cheira, sente um leve prazer, e põe tudo na boca. Continua encurvado, para não mais se endireitar.
Segue caminho na mata, adormece. Tem um sonho tranquilo, que se repete todas as noites, no qual se vê flutuando em um grande vazio escuro com breves clarões.


FIM