quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O HOMEM ENCURVADO

Essa história se passou em Maracanaú no final da década de 1980, no extremo sul da Rua Manoel Pereira. Ali morava uma família humilde formada por três pessoas: José das Chagas, sua esposa Maria das Chagas, e o único filho do casal, o jovem Francisco Willynélson das Chagas, de 20 anos.
Seu José passava seus dias em pescaria no açude de Santo Antônio do Pitaguary, próximo a sua casinha. Era um velho de trinta e nove anos, e vivia mecanicamente, indo e vindo carregando sua cesta, que ele enchia com traíras e acarás do açude. Não era de muitas palavras, nem de muitos amigos.
Já Dona Maria tinha pensamentos que oscilavam de uma religiosidade medrosa a uma supersticiosidade extrema. Nela sobravam as palavras que faltavam ao marido.
Nelso, como era conhecido, falava menos que seu pai, e pensava quase que na mesma proporção com que falava. Quase sempre desconfiado, temia a todos, com exceção de seus pais. Odiava o isolamento, mas não conseguia viver de outro jeito. Poucos eram seus divertimentos. Um deles era caçar calangos com as mãos. Fazia isso gritando e balançando a cabeça. Sua mãe disse certa vez:
- Foi “quebrante”, o povo vivia “dizeno” que o “minino” era “bunitim” e eu “num” quis botar a fita vermelha no “bracim” dele, mulher...! Aí o “bichim” ficou retardado... Mas com a graça de Deus ele vai ficar bom, se Deus quiser...!
Quando conseguia pegar um calango, dava muitas voltas ao redor da casa, levantava o bicho o mais alto que podia, e movimentava-o sinuosamente. Neste momento, a brincadeira era outra. Ele fingia que o lagarto era um avião.
Apesar da simplicidade, a casa possuía televisão e aparelho de som, ambos presentes de  políticos em campanha. Sua rotina também consistia em assistir à velha TV, mesmo sem entender nada do que se passava. Porém gostava quando aparecia algum avião. Batia palmas e pulava na cadeira, falseteando alguns gritinhos. Repudiava qualquer tipo de música, a não ser as do LP da Tufa, uma linda apresentadora infantil sem nenhum talento, muito amada naquela época. Nelso delirava a cada refrão:
- Acara-cara-cara-lhê-ô-ô-ô, Acara-cara-cara-lhê-ô-ô-ô...
Assim, ele passava o dia inteiro, ouvindo essa música de gosto duvidoso, até a chegada de seu pai, que sempre gritava:
-Fecha essa porra!
Obedecia sem contestar.
A mente de Nelso trabalhava pouquíssimo. Quando não estava se divertindo, sentava em um canto da casa olhando as estrelas. De repente, ele se via montado em um gigante calango asado voando cada vez mais alto... Até chegar a uma enorme montanha negra repleta de grandes refletores brancos. Esses delírios deixavam o rapaz extremamente angustiado, sentindo vontade de gritar, mas não o fazia. Em vez disso, encolhia-se até quase sumir, enquanto chorava e soltava gemidos semelhantes aos de cães depressivos e moribundos. Tanto sofrimento não impedia Nelso de ter os mesmos devaneios posteriormente, pois ele não se lembrava de nada no dia seguinte. Só havia uma coisa que o apavorava constantemente: comer baião quente e ir para chuva. Segundo sua mãe, ele ficaria torto e horrendo para sempre...
Certa vez, o jovem atormentado da família Chagas estava especialmente inquieto, andando de leste a oeste da casa, parecia desejar muito algo, mas não sabia o quê. Então, pôs o vinil da Tufa encostando a agulha na sua faixa mais querida. Ele começou a pular em êxtase. Sua excitação aumenta à medida que se aproxima o refrão, sentindo-se flutuar... Até que, justo numa ínfima fração de segundo antes do extremo gozo psicológico...
O disco engancha:
-Acara, acara... acara... acara...
O desespero toma conta de sua mente e logo transborda para todo o corpo... Ele não sabe o que fazer... Já passam das sete da noite e ele está só... O cheiro do baião-de-dois fervendo na panela e a chuva forte acompanhada de raios e trovões o deixavam mais aflito! Seu corpo encharcado de suor tremia em todas as direções. Uma profusão de imagens turvas de calangos alados invade sua mente!
Desesperado, põe a mão sobre o disco e gira-o no sentido contrário...
Nesse momento ele ouve a voz de Tufa:
-Cooooome o baaaaiiiiião...
Nelso corre até ao fogão, joga a tampa da panela para longe, enfia as duas mãos nesta sem se importar com sua temperatura absurdamente alta e começa a devorar o baião de maneira animalesca, com feijões escorrendo pelo seu corpo. Ele termina. Contudo, o disco continua enganchado no mesmo ponto. O rapaz vai ao encontro da vitrola, e mais uma vez gira o disco na direção contrária, e novamente ele ouve a Tufa:
-Cooooorreeeeeee...
Nesse instante seu desespero só poderia ser comparado ao de uma mulher que vê seu filho sendo assassinado! Solta um grito intenso e horrendo como o de uma grande besta selvagem. E corre! Bate o joelho na porta e cai girando sobre si mesmo em meio à lama e à chuva. Levanta os braços e grita novamente, agora com mais fúria! Os trovões começam a lhe falar algo:
-Toooorrrrtooooo...
Cheio de horror, seu corpo começa a encurvar-se como um ponto de interrogação, seus joelhos dobram e seus braços entortam para dentro, colando-se ao peito. Quase cai, em vez disso, corre para o meio da mata densa. Cai e levanta várias vezes enquanto corre, até que avista um calango, agarra-o com força e devora-o com ferocidade. Então, para... Fica confuso. Já não se lembra mais de sua casa, família, da Tufa... Nada... Olha em volta e só vê árvores e relâmpagos. Percebe que na sua mão estão alguns restos do calango. Ele cheira, sente um leve prazer, e põe tudo na boca. Continua encurvado, para não mais se endireitar.
Segue caminho na mata, adormece. Tem um sonho tranquilo, que se repete todas as noites, no qual se vê flutuando em um grande vazio escuro com breves clarões.


FIM