segunda-feira, 11 de abril de 2011

O Retrógrado

Daniel Dutra Um

Passava das duas horas da tarde. Naquele abril de 1990, em Maracanaú, o clima estava especialmente terrível. O sol expulsara as nuvens e fritava as sete pessoas no ponto de ônibus. Havia muito “ai, meu Deus!”, “porra!”, “caralho”, “diabo dessa merda não chega logo!”, dentre outras infâmias. No meio de tanta reclamação, José das Chagas estava alheio a tudo. Tinha pouco mais de quarenta anos. Era moreno da cor do barro. Seu rosto enrugado e sua expressão grave davam-lhe uma aparência bem mais velha. Não se importava com o calor, nem com o suor constante, que lhe pregava a já gasta camisa marrom ao peito. Apenas segurava o chapéu de palha sem tirá-lo da cabeça, olhava ao longe e pensava em seu filho, Willynélson, e no que acontecera a ele. Então, soltava o ar pelo nariz. Em um desses suspiros, lamentou em voz baixíssima:
-- O “bichim”...!
Finalmente o ônibus chegou e todos entraram. José das Chagas passou pela roleta sem responder ao cumprimento do cobrador. Sentou-se em um assento logo adiante e ficou mudo a observar a vista da janela.
Tudo ocorria no mais calmo tédio até chegar um rapaz de uns dezoito anos. Ele era magro, estatura mediana, trajava calça de moletom apertada, camisa vermelha bem justa e um brinco dourado na orelha esquerda. Entrou serpenteando no coletivo e encontrou uma amiga sentada perto do motorista. Ao avistá-la exclamou:
--Diz, “bicha véa”!
Ao que ela respondeu:
--Fala, Irisvando!
--Não me chama assim, mulher! Sabe que eu não gosto!
--Desculpe, Íris.
--Ah, sim! Irisvando não combina com a minha personalidade. Hi, hi, hi.
-- Tu tava onde, que eu não te via mais?
-- Tava por aí... você que sumiu...
Enquanto ocorria este pequeno diálogo, um homem cochichou a outro:
-- É “veado”.
A conversa continuou:
-- Então, Íris, tá fazendo o quê?
-- Ai, mulher, tô fazendo faculdade, curso de Letras e me encontrei...
-- Como assim?
-- Ah, mulher, lá eu não preciso me esconder... posso ser eu mesmo ! Não preciso ficar preocupado em como agir, pensar e falar o tempo todo. Sou totalmente livre!
-- Livre como?
-- Ah, você sabe, né, Karla!? Quem é diferente como eu precisa sempre disfarçar, mostrar “pros” outros uma coisa que a gente não é... mas agora, não! Eu posso me abrir, ser espontâneo e mostrar quem eu realmente sou!
--  Tá gostando do curso?
-- Tô amaaaaaaaaaandooooooo! “Tô” vendo tudo que venero: poesia, crítica literária, gente interessantíssima e com ótimas idéias! Viva a Letras!
Aquela veadagem toda estava deixando Seu José louco de raiva! Sua ira crescia a cada gesto e palavra do universitário. Portanto, após alguns instantes de imensa resignação, volta os olhos para o cobrador e “vomita”:
-- Rapaz... sabe “duma” coisa que eu tenho abuso!? É de “veado”!
O jovem interrompe a respiração, assustado e estupefato! E o velho continua:
--O povo fala que “homossessalirmo” é de nascença... nascença, uma porra! No tempo do meu pai, quando aparecia um “mininozim fresquim”, a gente metia-lhe a chibata e “num” instante aprendia ser “hômi”!
Tais palavras tiveram um efeito bastante diverso nos passageiros. Alguns sorriam discretamente, Karla mostrava-se assustada e constrangida a arregalar os olhos. Havia ainda os que, a exemplo do cobrador, ficaram impassíveis. Quanto ao nosso pederasta, este trocara o semblante risonho e amistoso por uma expressão extremamente séria. Não correspondia ao olhar apoplético de sua querida “bicha véa”. Mantinha as pálpebras semicerradas e o olhar reto. Permanecia estático. Motorista olhava pelo espelho, divertindo-se da situação. O pai de Willynélson continuava o seu discurso homofóbico:
-- Como é que pode!? O “cara” nascer “hômi” e “num” gostar de mulher! Preferir levar vara nos “quarto”!
Agora, algumas pessoas já não disfarçavam as risadas.
--“Pra” mim, veado tem que ir “pro” inferno! É bom que lá vai aproveitar o fogo e queimar a rosca bem muito!
Dito isto, com exceção do cobrador de Karla e de Íris, todos gargalharam estridentemente! O velho agigantava-se cada vez mais. Sentia um prazer imenso e novo no exercício da humilhação.
Agora, peço ao leitor imaginar um leão imponente sobre uma zebra ensangüentada. Ela respira com dificuldade e mal consegue mexer as patas. De súbito, o asinino dá um salto empurrando o leão, que cai de costas para o solo. Depois afugenta-o através de mordidas e tenebrosos relinchos. Não conseguiu? Tudo bem, talvez eu tenha exigido muito de você. Pois bem, voltemos ao ônibus. Munido de uma confiança voraz e sádica, Seu Chagas preparou mais uma frase preconceituosa, mas foi interrompido pelo movimento brusco do rapaz, que se levantou e fulminou o velho com um olhar decidido e furioso. O idoso, espantado, conteve-se. Após meio segundo, o jovem disparou:
-- Eu espero que o seu pensamento retrógrado MORRA... EM BREVE... COM O SENHOR!
Tais palavras esmagaram o orgulho do ancião, pois este julgava a presa já dominada. Neste momento, observava aparvalhado o rapaz descer do transporte. Percebeu o riso dos passageiros, que agora riam dele, e sentiu-se mais humilhado. Por fim, tentou inutilmente recuperar o respeito de todos olhando pela janela na direção do rapaz, que entrava no Centro de Humanidades da UFC, dizendo:
-- É o quê, rapaz!? Como é!? Ora... um baitola desse...!
O velho fora humilhado sem saber por quê. Este fato assombrará o velho para sempre. Nunca vai saber o significado da palavra retrógrado!


FIM