O despertador toca e Angelina
abre seus olhos castanho-claros de 11 anos. Naquele 10 abril de 1990, acordava
uma menina muito feliz em seu aniversário. Ela pensava na festa, nos parentes,
nos amigos e em tudo o que esperava vir no final daquela tarde de sexta.
Como sempre, ao despertar, beija
os cabelos castanhos de sua boneca Lina. O amor por aquele brinquedo era uma
extensão do carinho por si mesma, pois, para a garota, a bonequinha era sua
versão em miniatura. A única diferença era a cor verde dos olhos feitos de dois
grandes botões. A menina tinha a impressão de que os círculos esverdeados
revelavam sempre um olhar de admiração e ela adorava isso! Adorava também o
sorriso eterno da boneca de pano.
Lina era sua melhor amiga,
ouvinte de cada alegria, decepção e toda sorte de segredos. Angelina amava a
vida e a todos quase tanto quanto a si mesma. Ela despertava bastante admiração
por sua gentileza, simpatia, religiosidade e suas notas sempre bem acima da
média na escola. Com uma vida tão perfeita, seu sorriso constante era quase tão
eterno quanto o de sua boneca. Por isso, sempre agradecia a Deus por tanta
felicidade. Ela estava justamente agradecendo a Deus quando ouviu umas
batidinhas na porta. Era sua mãe. Dona Maria Angélica abriu a porta suavemente
com um sorriso largo e os olhos brilhando!
-- Como vai, meu anjinho lindo!?
Mamãe vai fazer esse dia muito especial pra minha bonequinha! Me dá um abraço,
meu amor!
Durante o abraço, a menina
reclama num sorriso:
-- Ah, mãezinha! Eu tava orando!
-- Ah, meu amorzinho, desculpa a
mamãe, tá!? Mamãe vai trazer seu cafezinho especial na caminha! Quando terminar
de conversar com o Papai do Céu, toca o sininho que eu venho! Dá um beijo
demorado na testa da filha e sai. Logo, o sininho toca e ela volta com a bandeja
cheia. A menina agradece a Deus antes de comer. Pouco depois, já está pronta
para ir à escola. Beija sua bonequinha e sai alegre de casa.
Na escola, tudo ocorreu tranquila
e alegremente. Em certo momento, uma amiga de sala lhe mostrou um batom e
perguntou:
-- Quer passar?
-- Não sei... nunca passei
isso...
-- Passa um pouco... não tem
problema.
Ela permitiu que a amiga lhe passasse
o batom e logo depois ela viu o resultado no espelhinho. Angelina ficou contente
com a pequena mudança. Era algo novo que a deixou feliz. Parecia que nada
poderia estragar seu dia, mas... bem... a vida pode ser surpreendente, às
vezes... só às vezes...
Na volta, ela caminhou distraída
pelas calçadas, os pés mal tocavam o chão porque sua cabeça estava nos ares.
Seus olhos contemplavam o céu absurdamente azul. Sua mente viajava, mas essa
viagem foi interrompida pela visão de um homem grande que apareceu
abruptamente. De repente, a menina olha
o abismo daqueles olhos verdes do homem grande e o abismo daqueles olhos verdes
encaram a menina de volta. Assim, a garota, paralisada e em choque sente as
mãos do monstro apertarem seus abraços para conduzir a garota a um beco
próximo. Sem demonstrar qualquer reação, a menina estava novamente em estado de
semiconsciência. Tal estado, durou até estarem no interior do beco. Lá, a
semiconsciência caiu em uma inconsciência completa. O monstro fez o que quis e
ela, sem piscar, apenas encarou os olhos sinistros daquele homem. O terror
silencioso não demorou, mas Angelina continuou deitada por alguns minutos. Ela
foi voltando aos poucos a um estado de consciência, porém com muita confusão
mental. Enfim, levantou-se, ajeitou sua roupa e saiu caminhando mecanicamente
até sua casa.
Ao abrir a porta de casa, ouviu
um grito de uma pequena multidão em uníssono:
-- SURPREEESAAAA!
Susto! A surpresa foi também das
dezenas de pessoas que prepararam a festa para Angelina. Mãe, tia, primos e primas além de duas amigas
que faltaram aula para ajudar na preparação da festa-surpresa. Todos ficaram em choque ao ver a menina com
cabelo assanhado, a boca manchada com batom e a roupa um pouco rasgada. A mãe
correu primeiro em direção à filha:
-- Meu anjo! O que aconteceu!?
Por que você tá assim!?
Nenhuma resposta! Seus olhos
pareciam de vidro, suas pálpebras não baixavam! Sua aparência era a de uma
boneca-robô maltratada. Dona Angélica a largou e ela foi andando em passos
lentos e constantes até o banheiro. Entrou lá e a mãe pediu para os convidados
saírem. Angelina passou vários minutos tomando calmamente seu banho, ignorando
as batidas na porta da mãe. Ela sai de toalha, vai ao quarto e se veste como se
alguém a tivesse programado para isso. Deitou-se na cama. Seus olhos não se
moviam e sua mente não se lembrava de quase nada do que acontecera depois da
escola. Só se lembrava dos olhos verdes do monstro, não do rosto do monstro nem
de mais nada do monstro! Só se lembrava daqueles olhos verdes.
No mesmo dia, a garota estava no
hospital. Um rápido exame confirmou a violência sofrida pela menina. A mãe, em
desespero e revolta, culpou o batom e a própria menina pela tragédia. A menina,
quase em transe, só conseguia perceber alguns fragmentos da fala da mãe:
-- ... não podia... quem... esse
batom... você não viu... provocou... meu Deus!
Na volta do hospital, Dona Angélica
já desistira de arrancar alguma palavra da filha. A menina, tomou outro banho e
se deitou. Durante o sono, os olhos verdes voltaram a assombrá-la, aumentando e
diminuindo, abrindo e fechando. Com isso, o pavor noturno deixou sua respiração
ofegante e sua pele molhada de suor. Quando acordou, sua boca se abriu para
gritar, mas sua voz não saiu. Seus olhos ficaram arregalados por alguns
segundos enquanto algumas gotas de suor lhe caíam pelo rosto. Ao olhar para o
lado, viu sua boneca e sentiu um pequeno alívio. Por isso, segurou sua querida
Lina para abraçá-la, mas sentiu novo pavor ao ver de perto os olhos verdes de
sua amiga de pano. Num imenso grito, lançou a simpática Lina na parede e se
contorceu na cama entre soluços e lágrimas.
Sua mãe aparece logo em seguida:
-- O que foi, Angelina!?
Só teve choro e soluço como
resposta, pois a menina podia gritar, mas havia perdido a capacidade de falar. Mesmo
assim, Dona Maria Angélica percebeu que a boneca causava pânico na filha. Logo,
pegou a boneca e a jogou fora.
Passaram-se alguns dias e
Angelina permanecia em um estado de apatia assustador. Sua expressão era de um
manequim de loja e ainda não saíam palavras de sua boca, apenas alguns sons
primitivos como “hum” ou “ram”. Ainda não voltara à escola, ficava sentada no
sofá com olhar fixo e vazio na TV sem fazer diferença se estava ligada ou não.
Num desses momentos, ouviu sua mãe falar baixinho ao telefone:
-- Se ela pelo menos dissesse
quem é esse homem... porque o certo é ela se casar com ele...
O coração e a respiração da menina
pararam por alguns instantes, mas ainda conseguiu ouvir:
-- Não, não... psicólogo, não...
vou chamar o pastor...
Com efeito, três dias depois,
pastor Enoque estava lá falando com dona Maria Angélica e sua filha:
-- Pra tudo, Deus dá um jeito.
Não desanimem. Mãe e filha vão superar esse trauma. Quem sabe, né!? Talvez o
rapaz apareça pra se casar com a Angelina.
Ao ouvir isso, a menina sente uma
vertigem e desmaia. Acorda com enjoo e é levada ao hospital. Uma suspeita passa
a fazer morada na cabeça da mãe e, de fato, essa suspeita se confirma em pouco
tempo:
-- Filha, você tá grávida!
A menina não falou nada, só
chorou no abraço materno.
Passaram-se pouco mais de dois
meses do incidente no beco e Angelina voltara a falar. Não falava muito, só o
mínimo para uma conversação. Ela também havia voltado para a escola, mas vivia
isolada, só estudava em silêncio e percebia com tristeza e vergonha os olhares
julgadores e desconfiados, inclusive de suas ex-amigas. Desde o ocorrido, as amigas
cortaram relações com ela por imposição das mães. Assim, com exceção do
crescimento de sua barriga e uma série de fatores que acompanham essa fase, a
vida de Angelina não sofreu tantas alterações nos meses seguintes. Sua mãe e o
pastor repetiam sempre que a criança traria luz à vida da menina e de sua mãe. Onze
dias antes do parto, a menina quase sorriu vendo TV. Aos poucos, ela enterrava
seus traumas e vivia de uma maneira minimamente suportável. Ela criava novas
forças para seguir.
O dia do parto chegou. O parto
aconteceu. Angelina sobrevive e até tem força para segurar o bebê, uma menina
saudável de nome Luzia. Ela sentiu o calor da outra criança em seus braços, mas
não olhou o rosto da outra menina.
Já em casa, a menina dá sinais de
mais uma pequena melhora na sua saúde psicológica. Ela falava com alguma
frequência e, às vezes, ensaiava um sorriso. Dona Angélica cuidava da pequena
Luzia enquanto Angelina ainda ficava na cama. Parecia que tudo ficaria bem...
só parecia porque, após alguns dias, resolveram ter chegado a hora de Luzia
voltar aos braços de Angelina.
Abriu-se a porta do quarto e a
criança viu sua mãe com o bebezinho no colo. Angelina ficou um pouco
apreensiva, mas não muito agitada. Dona Angélica logo diz:
-- Olha, minha filha, seu
anjinho!
Ela segura Luzia e cria coragem
para olhá-la o rosto. A outra criança tem os olhos fechados e parecia sem vida
de tão calma. Tal serenidade acalma um pouco os nervos de Angelina e seu
coração vai aos poucos batendo mais devagar. Ela continua olhando o bebê
fixamente e a sensação de tranquilidade vai lhe dando também uma gostosa
satisfação... aquele alívio de quem sentiu muito pavor, mas percebeu que o
monstro não era tão assustador. A criança começa a sorrir enquanto segura a
menina nos braços. O alívio e a felicidade eram cada vez maiores. Finalmente,
depois de tantos meses, ela sentia que seu trauma não a afetaria mais. Aqueles
segundos de satisfação duraram até a outra criança acordar.
Angelina olhava Luzia com ternura
quando a outra criança abriu os olhos.
Olhos verdes! A menina viu aquilo com tanto terror que sua alma gritou!
Só a alma porque seu corpo apenas tremeu um pouco, gemeu baixinho, e suas
lágrimas desceram fortes. Enquanto chorava, o único som que produziu foi uma
vogal estendida e de som crescente:
-- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHH!
A tristeza era tão profunda que a menina
perdeu completamente a noção da realidade... não sabia mais de nada... não
havia espaço em seu corpo para saber de qualquer coisa, pois aquela imensa dor
ocupou todos espaços de sua estrutura infantil. Dona Angélica tirou a outra
criança de seus braços. A menina se contorcia na cama como se estivesse em
estado líquido descendo pelo ralo.
Passaram-se, dias e meses, mas a
tristeza não passou...
Angelina sofreu em silêncio até
morrer em sua cama no dia de seu aniversário de 12 anos.