O mês de abril de 1990 encontrou
uma menina em seus anos de puberdade descobrindo os primeiros beijos de amor.
Passava um pouco das 10 horas da manhã em Maracanaú e Wedna amassava seus
lábios abertos na boca de um colega de escola num muro baixo à sombra de uma
árvore. Ao seu lado, o irmão gêmeo da mocinha imitava a atitude da menina com
uma outra garota. Os quatro usavam uniforme escolar. Haviam feito provas e, por
isso, saíram mais cedo.
Aquela cena era comum por ali,
mas uma vizinha escandalizou-se com o que viu. A mulher apressou suas canelas
finas até a casa de Dona Edna. Ao chegar, bateu com força na porta e gritou:
-- Chega, mulher! Você não sabe
quem eu vi ali se esfregando no filho do Seu Zé da oficina!
Dona Edna ouviu aquilo enquanto
cozinhava o feijão e foi rápido, apesar de seu sobrepeso, abrir a porta para a
vizinha.
-- Quem!?
-- A tua menina!
-- O quê!?!?!?!
--É, mulher! Corre! Se não ela
vai pegar um bucho!
A desesperada mãe saiu furiosa a
correr pela calçada com uma sandália na mão. A vizinha, muito prestativa,
apagou o fogo que esquentava o feijão, tirou seu cinto, alcançou Dona Edna e
armou--lhe a outra mão:
-- Pega o cinto, mulher!
Com as duas mãos ocupadas, a mulher correu em
fúria para castigar sua filha. Esta ainda delirava com pensamentos úmidos
quando sua amiga lhe avisou em pânico:
-- Mulher! Tua mãe!
Suas pupilas dilataram, sua
ofegante respiração parou instantaneamente bem como seu coração, mas este logo
passou a metralhar-lhe o peito. Ela olhou para o lado e viu
aquele meteoro voar rasante e crescente em sua direção. A menina correu para a
rua e fez um movimento de arco, voltando à calçada. A mãe esbarrou nas outras
pessoas derrubando-as como se fossem pinos de boliche.
A senhora se levantou mais
furiosa ainda e foi em busca da filha que subia a calçada em altíssima
velocidade. A garota alcançou a porta de casa, subiu as escadas, entrou em seu
quarto e trancou a porta. O alívio ainda não invadira seu peito quando ouviu as
pisadas e os gritos da mãe no corredor:
-- VA-GA-BUN-DAAAAA!!!
PAMPAMPAMPAMPAMPAM! As pancadas
furiosas da mulher na porta eram bombas sonoras a explodir nos ouvidinhos e no
pequeno coração da menina.
-- VAGABUNDAAAA! ABRE ESSA PORTA,
WEDNA!
PAMPAMPAMPAMPAMPAM! Mais
explosões e a filha aperta as mãos contra as orelhinhas e contrai seu rosto
numa careta vermelha de pânico e desespero! Sua cabeça encurvada para frente deixam
cair lágrimas pesadas sobre suas coxas! PAMPAMPAMPAMPAM! Logo, ela sobe o
queixo e protesta:
-- O Relieudo também tava
namorando!
-- Não interessa!!! Seu irmão é
hômi!!! Abre essa porta, Vagabunda!!!
PAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAM.
As pequenas mãos da menina, como um torno, esmagam seu minúsculo crâneo! Sua
delicada boca se abre num grito interno e silencioso! O terror esquentava suas
veias e gelava seus ossos! PAMPAMPAMPAMPAMPAMPAM.
Silêncio.
Promessa:
-- Quando você sair daí, vai ver
uma coisa!!!
PAM. A garota ouve passos se distanciado
e seu coraçãozinho ainda infantil desacelera aos poucos. A respiração vai
ficando mais lenta e a serenidade volta a sua face. Ela começa a sentir um
alívio e uma alegria tímida. Levanta-se e vai ao banheiro, sua mão ainda
trêmula aciona a torneira, lava o rosto, olha-se no espelho, tem a impressão de
estar diante de outra pessoa e isso a assusta um pouco. Logo, cria uma
expressão séria que dura quase um segundo e, de súbito, se abre num sorriso
lento e ri. Primeiro em silêncio, mas depois:
-- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAAHA!!!
Com olhos apertados e cabeça em
movimento de pêndulo invertido, gargalha como um palhaço louco de cabelo
desgrenhado.
--
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAH!!! Escapei!!! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAH!!!
Ela ri até sua barriguinha doer.
Volta à cama, suspira e deixa cair seu corpinho sobre as molas do colchão. Ela
se sente leve tal qual um náufrago semiconsciente recém chegado à praia. Ela
fica praticamente imóvel por quase 10 minutos até ouvir leves batidas na porta.
Pompompom.
-- Minha fia, abra a porta. Não
vou fazer nada não. Venha comer. O almoço tá pronto.
A voz mansa da mãe lhe deixou
intrigada e nervosa. Por isso, ela mente:
-- Não, mãe. Tô com fome agora
não. Mais tarde eu como.
-- Tá bom, minha fia.
A menina se levanta e pega sua
caixinha de música. O movimento da bonequinha bailarina sobre o espelho e a
música Danúbio Azul, de Strauss, que sai da caixinha devolvem aos poucos a
serenidade da garota. Com a alma cansada ela adormece. Sonha que é ela a
bailarina girando sobre um chão espelhado. Seu corpinho gira e a menina se
sente leve, livre e contente, mas isso dura até ela ver uma outra bailarina a
seu lado. Esta, de vestido vermelho e expressão maliciosa, ri baixinho com a mão
na boca. A garota percebe uma incrível semelhança entre as duas. Isso a deixa
apreensiva e assustada. A moça de escarlate é a sua cópia mais sombria e
sensual! Era assustador ver uma versão de si mesma tão igual e diferente ao
mesmo tempo. De repente, sua gêmea para de girar, agarra os ombros da menina
com força, aproxima os olhos diabólicos dos olhos inocentes de Wedna e fala
cinicamente:
-- Você pensa que escapou, né!?
Não escapou. Você vai ter o que merece porque tava fazendo coisa feia. Vai
apanhar pra deixar de ser vagabunda!
-- Eu não sou vagabunda! Sou
romântica! Eu gosto dele de verdade! Meu irmão tem a mesma idade que eu e ele
nem gosta daquela menina. Ele que é vagabundo, cafajeste! Tá só enganando a
menina e beijando outras. Eu, que só gosto de um, só quero um, sou vagabunda
por quê!?
-- Porque você não é hômi. Sabe o
que você é?
-- O quê?
-- Minha fia...
Pompompom.
-- O quê!?
Sem entender nada, percebeu que a
sua cópia tinha agora a mesma voz de Dona Edna:
-- Minha fia...
Pompompom. A imagem de sua gêmea
foi ficando turva, as batidas (pompompom) se repetindo e ela continuava ouvindo
a voz da mãe:
-- Minha fia...
Ela acorda. Ouve suaves batidas
na porta (pompompom) e uma voz terrivelmente familiar:
-- Minha fia... já são 2 horas da
tarde, tá com fome não? Venha... que eu vou esquentar o almoço.
Ela sentia muita fome, mas não
cedeu:
-- Tô com fome ainda não, mãe.
Depois eu como.
-- Tá certo.
Sai.
Ela sentia muita fome. Não comeu
nada porque acordou muito ansiosa para dar seu primeiro beijo no seu primeiro
amor. Sua barriga lhe reclamava comida, mas seu pavor e sua desconfiança ainda
lhe acorrentavam àquele quarto. Wedna estava perdida, famélica e apavorada.
Sofria terrivelmente aquela privação de liberdade e seu senso de justiça quase
transformou seu medo em ira, mas o pânico não deixava espaço para o ódio.
Assim, suportou muitos minutos de angústia. Mais de meia hora se passaram e ela
vê a pequena bailarina lhe sorrir:
-- Hihihihi! Tua mãe vai te
pegar!
Ela fecha a caixinha de música e
acaba a alucinação por um instante. Ela olha no seu relógio amarelo e percebe os ponteiros marcarem 14:36 H. Pompompom. Tais batidas assustam a menina, mas
elas não vêm da porta. Wedna olha apavorada em direção à caixa e vê com pavor a
tampa se levantar por quase um centímetro a cada batida. Pompompom. Pompompom.
Pompompom. De dentro da caixinha, escuta uma voz infantil e manhosa:
-- Por favor, amiga, me tira
daqui! Por favor! Eu quero sair! Tá escuro aqui!
Ela se apieda e abre. A
bonequinha lhe sorri meiga e cordial como como a Branca de Neve:
-- Obrigada!
Depois, o sorriso meigo
lentamente se transforma em expressão de malícia:
-- Obrigada! Agora posso ver tua
mãe te batendo! HAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
Ela fecha a caixa rapidamente,
mas escuta novamente as terríveis batidas... pompompom:
-- Me tira daqui sua vagabunda!
Não tem como escapar!
Em desespero, ela pega a caixa e
levanta o objeto para estraçalhá-lo no chão, mas... pompompom:
-- Minha fia, eu tô indo pra sua
tia agora pra olhar um tecido. Só volto de noite. A comida ainda tá no fogão.
Tchau!
Ela ouviu desconfiada aquela voz
mansa e os passos da mãe no corredor e depois na escada. A garota foi até a
janela com olhos esbugalhados e a imagem da mãe entrando no carro lhe deu uma
euforia colossal! O carro dobrou a esquina e a menina correu até a porta, girou
a chave e passou apressada e lenta pelo corredor. Desceu as escadas com
dificuldade a tremer um turbilhão de emoções! Viu seu irmão Relieudo mexer na
vitrola e escutou a Plebe Rude: “Não é nossa culpa...” o som lhe revitalizou a
alma e deu a ela força para avançar até a cozinha.
Ela encheu com pressa o prato e
devorou, saboreou aquela comida fria com toda vontade enquanto a Plebe Rude lhe
gritava nos ouvidos: “ATÉ QUANDO ESPERAR...” Wedna se engasga num riso emocionado.
A boca está cheia, as narinas soltam um risinho de flauta e os olhos derramam
lágrimas de campeão olímpico! “ATÉ QUANDO ESPERAR...”
Relieudo passa por ela e abre a
geladeira. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. Ela termina de comer quando ele pega a
garrafa. “ATÉ QUANDO ESPERAR...” Ele se vira e olha sua irmã com um sorriso
cordial. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. Depois, ele olha por cima da cabeça da menina
e seu sorriso fica mais largo e feliz. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. A menina, em
pânico, entende o sinal, mas antes que olhasse para trás uma garra de monstro
puxou sua cabecinha para trás derrubando a garota e a cadeira! “ATÉ QUANDO
ESPERAR...”. O cinto de dona Edna subiu e desceu muitas, muitas, muitas vezes:
-- EU DISSE QUE TE PEGAVA!!!
PÁ, PÁ, PÁ!!! “ATÉ QUANDO
ESPERAR...” PÁ, PÁ, PÁ:
-- AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH,
PARAAAAAA!!!
“... A PLEBE AJOELHAR...” PÁPÁPÁ:
-- AAAAAAAAAAAAAAHHH!!!
“ESPERANDO A AJUDA DE DEUS.”
PÁPÁPÁ!!!
Dona Edna soube esperar. Respirou
fundo, criou uma estratégia cruel e racional para, no momento certo, liberar
sua deliciosa fúria moralista sobre uma criatura frágil e indefesa. Aquele
anjinho desceu as escadas e sofreu o inferno dos valores vigentes no nosso
saudoso século XX. Paciência é uma virtude.
FIM
👏🏻👏🏻 gostei rs
ResponderExcluirMt obg
ExcluirAdorei. Amei o final, surpreendente, embora ele mostre a violência da dura realidade de uma sociedade conservadora.
ResponderExcluir👏👏👏👏👏👏 texto maravilhoso...
ResponderExcluirBoa reflexão desse conto.
ResponderExcluirAtt