terça-feira, 30 de julho de 2019

A ANGUSTIADA WEDNA


O mês de abril de 1990 encontrou uma menina em seus anos de puberdade descobrindo os primeiros beijos de amor. Passava um pouco das 10 horas da manhã em Maracanaú e Wedna amassava seus lábios abertos na boca de um colega de escola num muro baixo à sombra de uma árvore. Ao seu lado, o irmão gêmeo da mocinha imitava a atitude da menina com uma outra garota. Os quatro usavam uniforme escolar. Haviam feito provas e, por isso, saíram mais cedo.
Aquela cena era comum por ali, mas uma vizinha escandalizou-se com o que viu. A mulher apressou suas canelas finas até a casa de Dona Edna. Ao chegar, bateu com força na porta e gritou:
-- Chega, mulher! Você não sabe quem eu vi ali se esfregando no filho do Seu Zé da oficina!
Dona Edna ouviu aquilo enquanto cozinhava o feijão e foi rápido, apesar de seu sobrepeso, abrir a porta para a vizinha.
-- Quem!?
-- A tua menina!
-- O quê!?!?!?!
--É, mulher! Corre! Se não ela vai pegar um bucho!
A desesperada mãe saiu furiosa a correr pela calçada com uma sandália na mão. A vizinha, muito prestativa, apagou o fogo que esquentava o feijão, tirou seu cinto, alcançou Dona Edna e armou--lhe a outra mão:
-- Pega o cinto, mulher!
 Com as duas mãos ocupadas, a mulher correu em fúria para castigar sua filha. Esta ainda delirava com pensamentos úmidos quando sua amiga lhe avisou em pânico:
-- Mulher! Tua mãe!
Suas pupilas dilataram, sua ofegante respiração parou instantaneamente bem como seu coração, mas este logo passou a metralhar-lhe o peito. Ela olhou para o lado e viu aquele meteoro voar rasante e crescente em sua direção. A menina correu para a rua e fez um movimento de arco, voltando à calçada. A mãe esbarrou nas outras pessoas derrubando-as como se fossem pinos de boliche.
A senhora se levantou mais furiosa ainda e foi em busca da filha que subia a calçada em altíssima velocidade. A garota alcançou a porta de casa, subiu as escadas, entrou em seu quarto e trancou a porta. O alívio ainda não invadira seu peito quando ouviu as pisadas e os gritos da mãe no corredor:
-- VA-GA-BUN-DAAAAA!!!
PAMPAMPAMPAMPAMPAM! As pancadas furiosas da mulher na porta eram bombas sonoras a explodir nos ouvidinhos e no pequeno coração da menina.
-- VAGABUNDAAAA! ABRE ESSA PORTA, WEDNA!
PAMPAMPAMPAMPAMPAM! Mais explosões e a filha aperta as mãos contra as orelhinhas e contrai seu rosto numa careta vermelha de pânico e desespero! Sua cabeça encurvada para frente deixam cair lágrimas pesadas sobre suas coxas! PAMPAMPAMPAMPAM! Logo, ela sobe o queixo e protesta:
-- O Relieudo também tava namorando!
-- Não interessa!!! Seu irmão é hômi!!! Abre essa porta, Vagabunda!!!
PAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAMPAM. As pequenas mãos da menina, como um torno, esmagam seu minúsculo crâneo! Sua delicada boca se abre num grito interno e silencioso! O terror esquentava suas veias e gelava seus ossos! PAMPAMPAMPAMPAMPAMPAM.
Silêncio.
Promessa:
-- Quando você sair daí, vai ver uma coisa!!!
PAM. A garota ouve passos se distanciado e seu coraçãozinho ainda infantil desacelera aos poucos. A respiração vai ficando mais lenta e a serenidade volta a sua face. Ela começa a sentir um alívio e uma alegria tímida. Levanta-se e vai ao banheiro, sua mão ainda trêmula aciona a torneira, lava o rosto, olha-se no espelho, tem a impressão de estar diante de outra pessoa e isso a assusta um pouco. Logo, cria uma expressão séria que dura quase um segundo e, de súbito, se abre num sorriso lento e ri. Primeiro em silêncio, mas depois:
-- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAAHA!!!
Com olhos apertados e cabeça em movimento de pêndulo invertido, gargalha como um palhaço louco de cabelo desgrenhado.
-- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAH!!! Escapei!!! HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAH!!!
Ela ri até sua barriguinha doer. Volta à cama, suspira e deixa cair seu corpinho sobre as molas do colchão. Ela se sente leve tal qual um náufrago semiconsciente recém chegado à praia. Ela fica praticamente imóvel por quase 10 minutos até ouvir leves batidas na porta.
Pompompom.
-- Minha fia, abra a porta. Não vou fazer nada não. Venha comer. O almoço tá pronto.
A voz mansa da mãe lhe deixou intrigada e nervosa. Por isso, ela mente:
-- Não, mãe. Tô com fome agora não. Mais tarde eu como.
-- Tá bom, minha fia.
A menina se levanta e pega sua caixinha de música. O movimento da bonequinha bailarina sobre o espelho e a música Danúbio Azul, de Strauss, que sai da caixinha devolvem aos poucos a serenidade da garota. Com a alma cansada ela adormece. Sonha que é ela a bailarina girando sobre um chão espelhado. Seu corpinho gira e a menina se sente leve, livre e contente, mas isso dura até ela ver uma outra bailarina a seu lado. Esta, de vestido vermelho e expressão maliciosa, ri baixinho com a mão na boca. A garota percebe uma incrível semelhança entre as duas. Isso a deixa apreensiva e assustada. A moça de escarlate é a sua cópia mais sombria e sensual! Era assustador ver uma versão de si mesma tão igual e diferente ao mesmo tempo. De repente, sua gêmea para de girar, agarra os ombros da menina com força, aproxima os olhos diabólicos dos olhos inocentes de Wedna e fala cinicamente:
-- Você pensa que escapou, né!? Não escapou. Você vai ter o que merece porque tava fazendo coisa feia. Vai apanhar pra deixar de ser vagabunda!
-- Eu não sou vagabunda! Sou romântica! Eu gosto dele de verdade! Meu irmão tem a mesma idade que eu e ele nem gosta daquela menina. Ele que é vagabundo, cafajeste! Tá só enganando a menina e beijando outras. Eu, que só gosto de um, só quero um, sou vagabunda por quê!?
-- Porque você não é hômi. Sabe o que você é?
-- O quê?
-- Minha fia...
Pompompom.
-- O quê!?
Sem entender nada, percebeu que a sua cópia tinha agora a mesma voz de Dona Edna:
-- Minha fia...
Pompompom. A imagem de sua gêmea foi ficando turva, as batidas (pompompom) se repetindo e ela continuava ouvindo a voz da mãe:
-- Minha fia...
Ela acorda. Ouve suaves batidas na porta (pompompom) e uma voz terrivelmente familiar:
-- Minha fia... já são 2 horas da tarde, tá com fome não? Venha... que eu vou esquentar o almoço.
Ela sentia muita fome, mas não cedeu:
-- Tô com fome ainda não, mãe. Depois eu como.
-- Tá certo.
Sai.
Ela sentia muita fome. Não comeu nada porque acordou muito ansiosa para dar seu primeiro beijo no seu primeiro amor. Sua barriga lhe reclamava comida, mas seu pavor e sua desconfiança ainda lhe acorrentavam àquele quarto. Wedna estava perdida, famélica e apavorada. Sofria terrivelmente aquela privação de liberdade e seu senso de justiça quase transformou seu medo em ira, mas o pânico não deixava espaço para o ódio. Assim, suportou muitos minutos de angústia. Mais de meia hora se passaram e ela vê a pequena bailarina lhe sorrir:
-- Hihihihi! Tua mãe vai te pegar!
Ela fecha a caixinha de música e acaba a alucinação por um instante. Ela olha no seu relógio amarelo e percebe os ponteiros marcarem 14:36 H. Pompompom. Tais batidas assustam a menina, mas elas não vêm da porta. Wedna olha apavorada em direção à caixa e vê com pavor a tampa se levantar por quase um centímetro a cada batida. Pompompom. Pompompom. Pompompom. De dentro da caixinha, escuta uma voz infantil e manhosa:
-- Por favor, amiga, me tira daqui! Por favor! Eu quero sair! Tá escuro aqui!
Ela se apieda e abre. A bonequinha lhe sorri meiga e cordial como como a Branca de Neve:
-- Obrigada!
Depois, o sorriso meigo lentamente se transforma em expressão de malícia:
-- Obrigada! Agora posso ver tua mãe te batendo! HAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!
Ela fecha a caixa rapidamente, mas escuta novamente as terríveis batidas... pompompom:
-- Me tira daqui sua vagabunda! Não tem como escapar!
Em desespero, ela pega a caixa e levanta o objeto para estraçalhá-lo no chão, mas... pompompom:
-- Minha fia, eu tô indo pra sua tia agora pra olhar um tecido. Só volto de noite. A comida ainda tá no fogão. Tchau!
Ela ouviu desconfiada aquela voz mansa e os passos da mãe no corredor e depois na escada. A garota foi até a janela com olhos esbugalhados e a imagem da mãe entrando no carro lhe deu uma euforia colossal! O carro dobrou a esquina e a menina correu até a porta, girou a chave e passou apressada e lenta pelo corredor. Desceu as escadas com dificuldade a tremer um turbilhão de emoções! Viu seu irmão Relieudo mexer na vitrola e escutou a Plebe Rude: “Não é nossa culpa...” o som lhe revitalizou a alma e deu a ela força para avançar até a cozinha.
Ela encheu com pressa o prato e devorou, saboreou aquela comida fria com toda vontade enquanto a Plebe Rude lhe gritava nos ouvidos: “ATÉ QUANDO ESPERAR...” Wedna se engasga num riso emocionado. A boca está cheia, as narinas soltam um risinho de flauta e os olhos derramam lágrimas de campeão olímpico! “ATÉ QUANDO ESPERAR...”
Relieudo passa por ela e abre a geladeira. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. Ela termina de comer quando ele pega a garrafa. “ATÉ QUANDO ESPERAR...” Ele se vira e olha sua irmã com um sorriso cordial. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. Depois, ele olha por cima da cabeça da menina e seu sorriso fica mais largo e feliz. “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. A menina, em pânico, entende o sinal, mas antes que olhasse para trás uma garra de monstro puxou sua cabecinha para trás derrubando a garota e a cadeira! “ATÉ QUANDO ESPERAR...”. O cinto de dona Edna subiu e desceu muitas, muitas, muitas vezes:
-- EU DISSE QUE TE PEGAVA!!!
PÁ, PÁ, PÁ!!! “ATÉ QUANDO ESPERAR...” PÁ, PÁ, PÁ:
-- AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH, PARAAAAAA!!!
“... A PLEBE AJOELHAR...” PÁPÁPÁ:
-- AAAAAAAAAAAAAAHHH!!!
“ESPERANDO A AJUDA DE DEUS.” PÁPÁPÁ!!!
Dona Edna soube esperar. Respirou fundo, criou uma estratégia cruel e racional para, no momento certo, liberar sua deliciosa fúria moralista sobre uma criatura frágil e indefesa. Aquele anjinho desceu as escadas e sofreu o inferno dos valores vigentes no nosso saudoso século XX. Paciência é uma virtude.
FIM

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